Montanha é uma exploração visual de um relevo na paisagem.
Em 2012, quando lia o catálogo da exposição Film de Tacita Dean, na Tate Modern, em Londres, deparei-me com uma referência a um livro que não conhecia – O Monte análogo, Romance de aventuras alpinas, não-euclidianas e simbolicamente autênticas de René Daumal – que me suscitou um interesse especial pela descrição que Dean fazia dele. Demorei algum tempo até o conseguir ler, mas quando o recebi, li-o de uma vez, com o deslumbramento do reconhecimento de qualquer coisa fundamental para o trabalho que estava na altura a desenvolver. Foi do encontro deste livro com a minha observação diária e ao longe de um relevo que me parecia, de alguma forma, irreal e inatingível, que nasceu a peça Montanha.
Percurso de Montanha reúne as várias fases de elaboração desta peça, desde a sua preparação até à sua exibição e descreve a análise conceptual subjacente às imagens de que é composta, expondo os temas que me inquietam e a reflexão feita ao longo deste processo: Visibilidade | invisibilidade | perspectivas | tempo; Persistência | recorrência | citação; Duplicação | ampliação; Espaço | paisagem | lugar | percurso; Observação | registo | representação.
Um dos objectivos decorrentes desta apresentação é a sistematização do pensamento que me permite dar continuidade a esta peça com imagens de outras montanhas, entretanto identificadas e que constituem uma espécie de colecção, definindo uma espécie de atlas dos relevos que fazem simbolicamente parte da minha vida.
De forma a contextualizar esta pesquisa, acrescento ainda duas referências relacionais: foi o meu pai que me levou a percorrer montanhas, serras e montes desde a minha infância, e andar e pensar, andar a pensar tem, de certeza, muito a ver com isso; a minha mãe fez parte da equipa que escreveu o Dicionário da Academia das Ciências e o fascínio dessa possibilidade de definição de sentidos, de revelação de palavras, de necessidade de sistematização e clarificação do que se quer dizer tem uma relação muito directa com isso. Só me apercebi destas relações ao longo deste texto e de quão fundamentais são para o meu percurso artístico.
Percurso de Montanha é um processo de análise daquilo que produzo na minha prática artística, das metodologias que adopto, das estruturas e daquilo que constitui um corpo de trabalho. Remete para o conjunto do meu trabalho artístico, mas serve-se de Montanha como referente directo, numa exploração detalhada do processo de criação artística, que continua a surpreender-me e maravilhar-me, ainda e recorrentemente com uma certa incredibilidade por fazer parte da minha vida.
Esta apresentação organiza-se em três capítulos: A morfologia da Montanha, em que se definem os parâmetros de identificação e caracterização do objecto; A construção da Montanha, o capítulo em que se descrevem e analisam as dimensões conceptual e formal da peça; e A imagem da Montanha em que se apresenta a série de fotografias que constituem esta peça.
A morfologia da Montanha
Começo por identificar o objecto deste trabalho, a sua designação, a sua forma, o seu contexto.
Começo por identificar o objecto deste trabalho, a sua designação, a sua forma, o seu contexto.
(Montanha é uma) “Forma de relevo caracterizada por uma massa enorme de terra e de rocha bastante elevada, relativamente ao terreno que a rodeia”, mas simultaneamente designa uma “Grande elevação de qualquer coisa; grande volume ou conjunto de coisas amontoadas”. (in Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (2001). Lisboa: Verbo; pp. 2519.)
(Monte é uma) “Elevação natural de terreno acima das áreas circundantes mais baixas e de dimensão inferior à da montanha.”, mas simultaneamente uma “Grande quantidade de coisas empilhadas, amontoadas, de forma mais ou menos desordenada”. (in Dicionário da Língua Portuguesa Contemporânea da Academia das Ciências de Lisboa (2001). Lisboa: Verbo; pp. e 2521.)
Designar por Montanha um relevo insignificante em altitude que, quando avistado de sul para norte, tem em fundo um outro significativamente mais relevante parece, à primeira vista, uma distracção, mas não é. O título Montanha, contém antes, em si, não só uma ilusão, mas a referência à relação das formas de ambos os relevos – o monte e a montanha. É, por um lado, pela acepção simbólica e metafórica da palavra montanha que o título se clarifica e por outro pela relação de analogia e de repetição que se pretende manter, tendo a Montanha (que é apenas um monte) uma outra elevação, um monte junto a ele (que é a verdadeira montanha, mas se designa em qualquer mapa como monte). E, se existia aqui já alguma ambivalência e dificuldade descritiva, maior se torna pela designação oficial do relevo menor – Monte Redondo –, que contém no seu nome a referência directa à sua forma. Porque também essa referência é conceptualmente dúbia, uma vez que este monte (a Montanha) parece mudar de forma consoante a vertente que dele avistamos – redondo, por um lado, e piramidal, por outro.
Este objecto existe num vale plano, numa espécie de terreno neutro, coberto de vegetação de cores normais para aquela paisagem – verdes, cinzentos, castanhos – e facilmente passaria despercebido, por não ter uma dimensão ou características muito extraordinárias e não sei explicar quando e como comecei por reparar nele. Era um objecto do meu quotidiano como qualquer outro que, de um momento para o outro, se torna significante e passa a ser o ponto a partir do qual se desenvolve a pesquisa e o trabalho artístico.
“What begins as undifferentiated space becomes place as we get to know it better and endow it with value.” Tuan (1977) pp.6. (Tradução da autora: “O que começa por ser um espaço indiferenciado, torna-se lugar, à medida que o vamos conhecendo melhor e lhe atribuímos valor”)
“Place is a special kind of object. It is a concretion of value, though not a valued thing that can be handled or carried about easily; it is an object in which one can dwell.” Tuan (1977) pp. 12. (Tradução da autora: “Lugar é um objecto especial. É uma concretização de valor, embora não seja algo valioso que possa ser manuseado ou transportado facilmente; é um objeto no qual se pode habitar.”)
Partir de um objecto comum ao qual associo conceitos e referências como matéria é recorrente no meu trabalho. A partir de uma qualquer ligação conceptual com um objecto, inicia-se uma série de relações possíveis, uma acumulação de referências, que começam a moldar uma possibilidade de aquele objecto se constituir em referente e a sua representação em uma nova peça.
Voltando aos conceitos de montanha e monte, é na acepção comum entre a defi- nição de monte e de montanha, como um grande volume, quantidade ou conjunto de coisas amontoadas que se encontra um sentido harmonioso que se relaciona aqui com o processo criativo de concepção desta peça – um monte ou uma montanha de relações, de referências, de imagens, que em crescendo, ao longo do tempo, se tornam um corpo de trabalho, uma peça artística. Percorro erraticamente estes territórios, como percorro a paisagem.
Detenho-me num e noutro ponto para observar qualquer coisa que me interessa mais, olho em volta e vejo a vista, para me reposicionar e me orientar. Volto aos mesmos sítios várias vezes para encontrar sempre qualquer coisa que não tinha visto antes. E, finalmente, escolho e organizo as imagens e conceitos que vão constituir esta peça.
cume sopé base dobramentos erosão rupturas falhas elevação volume relevo inclinação espaçamento continuidade vertente encosta cota nível vale altitude colina ver distância paisagem. lugar visibilidade perspectiva espaço recorrente citação registo observar percurso caminho berma vista duplicação. ampliação representação. persistência tempo orientação. partida. regresso expedição passeio deambulação contemplação andar passos pedras vegetação. horizonte subida descida concretização ilusão metáfora memória impressão imagem
A construção da Montanha
Neste capítulo descrevem-se e analisam-se as dimensões conceptual e formal da peça.
Neste capítulo descrevem-se e analisam-se as dimensões conceptual e formal da peça.
Montanha, 2015
Um percurso criado a partir de uma observação recorrente de um relevo que visualmente se me impunha diariamente na passagem, por um momento, na paisagem de ida e volta.
Num vale plano, com uma montanha em fundo, um pequeno monte, uma saliência circunscrita a uma área muito pequena num vale, que se destacava quer pela sua singularidade quer por analogia com a montanha em fundo.
Comecei por contemplar, naquele embalo de viagem que permite criar um filme, uma sequência de imagens em movimento que atravessam o nosso olhar, enquanto nos deslocamos. Depois aquele relevo desencadeou uma série de relações, entre referências e memórias, que o tornaram demasiado significante para não ser observado de uma forma mais intencional e metódica, um referente absolutamente necessário.
“To find a way of reaching the island, one must assume the possibility and even the necessity of reaching it.” Daumal (1992). (Tradução da autora: “Para encontrar uma forma de chegar à ilha, deve assumir-se a possibilidade e mesmo a necessidade de lá chegar”)
Na origem desta peça está um caderno de campo do qual apresento aqui as anotações que fui fazendo no percurso, revistas posteriormente no atelier.
1a viagem
Abordagem pelo lado norte
Saímos sem ter a certeza da estrada que nos levava até lá. Ao longe parecia facilmente acessível, mas à medida que nos fomos aproximando a estrada começou a desviar-se até ao ponto de deixarmos de ver o monte e de começarmos a duvidar da possibilidade de lá chegarmos por ali, naquele dia.
Durante muito tempo não voltámos a ver sinais da sua presença. Apenas e persistente, ao fundo, bem visível e longe, uma espécie de duplicação ampliada nos mantinha com a certeza de estarmos ainda do lado certo do vale.
De repente, no meio de uma conversa, a meio de uma curva, lá estava ele outra vez, mesmo ali ao nosso lado. Mas esta aparição inesperada foi quase imediatamente interrompida pelo continuar da curva. Desapareceu outra vez. Ainda pensei que não teria visto bem, talvez. Mas, outra vez, de repente, lá estava ele. Reapareceu. Ali estava, agora sem interferências, em pleno. Suficientemente grande e simultaneamente pequeno. Dali agora não se via a sua duplicação ampliada, por isso a sua dimensão era absoluta, no meio do vale.
Parámos passado pouco tempo e pisámos, por instantes, a base e registámos o momento do alcance desta etapa.
Esta viagem terminaria aqui. Teria que voltar, para subir ao cume, num outro dia.
Passaram-se meses.
Fui pesquisando sobre aquele sítio. Fui buscar uma carta militar. Encontrei novas referências e novas relações. E continuei, quase diariamente, a passar pela estrada de onde desde o início o via, no meio de um vale plano, com uma montanha em fundo.
2a viagem
Abordagem pelo lado sul
Saí sozinha e com tempo, desta vez. Queria, desde o princípio, experimentar um caminho que não sabia se existia, mas me parecia lógico existir. Parecia-me mais perto, mais simples, mas não sabia se era um caminho possível.
Atravessei a terra aparentemente mais próxima, mas a estrada chegou a uma espécie de fim com uma bifurcação para direcções que não me interessavam, por me parecerem opostas. Mas havia uma saída. Continuei como se sempre tivesse sabido que era por ali o caminho.
Passei ao lado do monte, contornei-o um bocadinho e saí da estrada, em direcção ao que pensei ser uma outra terra e onde pensei que poderia deixar o carro. Parei pouco depois, porque afinal ali não era bem uma terra. Apenas um edifício vedado e um pouco mais à frente um outro, estranhamente isolado, em forma de hexágono, que era um café, com vista para o monte e para a montanha. Um lugar intermédio. Entrei e, entre um abatanado e qualquer coisa para comer, escrevi estas anotações, pedi informações sobre o monte e fiquei a saber como lá chegar, como subir e o seu nome – o Monte Redondo. Tudo muito simbólico, tudo muito significante.
Saí, percorri lentamente, a fotografar e com muitas interrupções, o caminho até ao cume, mantive-me lá em cima durante algum tempo, observando a vista em redor, procurei o ponto da estrada de onde inicialmente tinha visto este monte e desci com uma sensação de concretização, como se tivesse completado qualquer coisa absolu- tamente necessária.
Continuei a fotografar no regresso até ao momento em que me apercebi de um e outro montes que, como réplicas surgiam no vale, deixando-me incerta em relação ao que tinha realmente percorrido.
“Mount Analogue exists for those who do not doubt the possibility of its existence, but for those others, it is an impossibility, a fantasy.
(...)
Mount Analogue: analogue, which has now come to mean all that is not digital, proposes a place, a mountain, a realm of the mind that can be reached by those who feel that it is possible, in fact necessary, to do so. Mount Analogue itself, Daumal writes in the summary of the book he knows he will not finish, embodies the ‘knowledge to be passed on to other seekers... Before setting out for the next refuge, one must prepare those coming after to occupy the place one is leaving.’ „9
Posteriormente, no atelier, construí a sequência de imagens que fazem parte desta peça, tendo sempre presentes as questões que me interessavam por estarem subja- centes à sua leitura, à sua interpretação.
9 Dean (2011) p. 27. (Tradução da autora: “O Monte Análogo existe para quem não duvida da possibilidade da sua existência, mas para os outros é uma impossibilidade, uma fantasia.
(...)
Monte Análogo: análogo, que passou a significar tudo o que não é digital, propõe um lugar, uma montanha, um reino da mente que pode ser alcançado por quem sente que é possível, de facto necessário, fazê-lo. O próprio Monte Análogo, escreve Daumal, no resumo do livro que sabe que não vai terminar, incorpora o ‘conhecimento a ser passado a outros exploradores... Antes de partir para o próximo refúgio, é preciso preparar os que vêm depois para ocupar o lugar que estamos a deixar.’„)
Visibilidade | invisibilidade | perspectivas | tempo
Nesta peça, como em outras anteriores e posteriores, interessa-me, antes de mais, o acto de ver, observar e o dar a ver. Ou seja, o olhar anterior à captação, que é um olhar ainda distante, informado pelas referências que vou acumulando, um olhar pré-dirigido, pré-definido; a forma de captar, enquadramentos específicos que estabelecem limites e circunscrevem o olhar a determinados elementos numa análise do objecto, perante o próprio objecto, numa relação de proximidade, de presença; e o que realmente dou a ver aos outros a partir do momento em que selecciono as imagens que integro na peça, que pretendo que constituam um todo, uma outra visão do objecto representado e interpretado, novamente introduzindo a distância entre o objecto e o que dele vemos, um tempo diferido.
“We use our eyes for seeing. Our field of vision reveals a limited space, something vaguely circular, which ends very quickly to left and right, and doesn’t extend very far up or down (...)if we raise our eyes, we can see there’s an up, if we lower them, we can see theres’s a down. If we turn our head in one direction, then in another, we don’t even manage to see completely everything there is around us; we have to twist our bodies round to see properly what was behind us.
Our gaze travels through space and gives us the illusion of relief and distance. That is how we construct space, with an up and a down, a left and a right, an in front and a behind, a near and a far.” 10
Ao definir o objecto na paisagem anulo, de algum modo, o que mais exista para ser visto. Predisponho-me a captar aquilo e não tudo o que demais existe disponível para o meu olhar. Concentro-me ali e é aquilo que vou passar a ver através da câmara.
Depois percorro esse espaço delimitado e a paisagem passa a ser vista através de um olhar fragmentado, decompondo o que o olhar alcança em pequenas partes que se tornam imagem inteira – o lugar – e tomam a forma de paisagem por si.
10 Perec(1974)p.81.(Traduçãodaautora:“Usamososnossosolhosparaver.Onossocampodevisão revela um espaço limitado, vagamente circular, que termina muito rapidamente à esquerda e à direita e não se estende muito nem para cima nem para baixo (...) se levantarmos os olhos podemos ver que há um cima, se os baixarmos podemos ver que há um baixo. Se virarmos a cabeça numa direção e depois noutra, nem conseguimos ver completamente tudo o que existe ao nosso redor; temos que girar nossos corpos para vermos corretamente o que está atrás de nós.
O nosso olhar viaja pelo espaço e dá-nos a ilusão de alívio e distância. É assim que construímos o espaço, com um cima e um baixo, uma esquerda e uma direita, um em frente e um atrás, um próximo e um distante. ”)
É pela acção da fotografia que o objecto de observação, inicialmente visto ao longe, com a sensação de ser inatingível, se torna tangível, se torna mais real, possível de ser visto dentro de um quadro conceptual que lhe confere um outro sentido, uma outra possibilidade de entendimento, uma outra possibilidade de percepção.
Visualmente sinto a necessidade de enfatizar a distância inicial numa redução de nitidez, através de um vidro quase invisível, mas que serve de barreira visual, apenas perceptível por retirar detalhe à imagem; através do movimento do carro a partir do qual capto a imagem; pela utilização de um dispositivo tecnicamente incapaz de produzir uma imagem limpa de interferências. Uso estas características de desqualificação da imagem como matéria de criação da própria imagem, como matéria de relação de distanciamento e de irrealidade, como se ao objecto retirasse presença, a noção de existência num tempo determinado.
“Distance, unlike length, is not a pure spacial concept; it implies time. (...) Timelessness is another quality of distant places” 11
Ver ao perto, em presença do objecto permite criar um contraponto espacial, mas também temporal. Decidir enquadramentos, limites, produzindo com isso uma outra imagem do lugar, composta por elementos específicos que se sublinham, que se retiram de contexto, que se misturam, mas que se voltam a juntar, no final, como peças de um puzzle, para dar a ver o mesmo lugar em novas perspectivas.
Estar no objecto, já sem o ver como um todo, é um outro tempo também. É estar no presente, no momento em que o objecto se torna recurso. Percorrê-lo até ao ponto mais alto, com esse objectivo, o de ver do outro lado, do lado daquilo que antes era visto, estar no que era até àquele momento desconhecido. E desse lugar poder ver o espaço inverso de onde partimos, o passado. E depois regressar, sair do objecto voltando a olhar para trás para registar memórias, atribuindo-lhe uma leitura de passado. Voltar ao presente, mas fora daquele lugar.
11 Tuan (1977) p. 119. e p. 122 (Tradução da autora: “Distância, ao contrário de comprimento, não é um conceito puramente espacial; implica tempo. (...) A atemporalidade é uma outra qualidade dos lugares distantes”)
Persistência | recorrência | citação
Demoro muito tempo a iniciar cada novo projecto, cada nova peça. Às vezes desaparecem os referentes antes que possa iniciar um trabalho, mas é o tempo de observação e de maturação de que necessito para produzir. É de uma persistência do olhar sobre um mesmo assunto, inicialmente até sem intenção nenhuma de que aquilo se venha a tornar uma peça, que começo. Vou-me apercebendo de que qualquer coisa dali ficou no meu pensamento, no meu corpo. Sinto-lhe uma presença física. Depois uma ausência física. E aí é o momento de registar. Quando aquilo me começa a fazer falta e preciso de ter comigo a sua imagem.
Passar pelos mesmos sítios, olhar para coisas que remetem umas para as outras, criar essas relações, relacionar com referências, e agora aqui, com recorrências numa citação: a Montagne Sainte-Victoire para Paul Cézanne, o marmeleiro para Antonio López12, as nuvens, os céus para Stieglitz13 faz parte da construção de cada peça, é imprescindível para a sua concepção, para a sua coerência, para a sua consistência.
Fig. 1 Paul Cézanne, La Montagne Sainte-Victoire Fig. 2 Antonio López, Membrillero t
Fig. 3 Alfred Stieglitz, Equivalent
Fig. 3 Alfred Stieglitz, Equivalent
12 Em referência a El Sol Del Membrillo (Víctor Erice, 1992)
13 Em referência a Equivalentes
Voltar aos sítios, aos livros, aos filmes, às frases, àquela luz, ao som, até que tudo começa a fazer sentido, numa sequência de pensamento, de discurso, de imagens, que se ligam como que pela cadência infalível de um metrónomo.
A recorrência das referências que pertencem ao meu trabalho, ou a que o meu trabalho pertence, a recorrência de alguns temas, que se vão desenrolando de umas peças para as outras, com variações, com mais ou menos intensidade, a recorrência das linhas, de formas que voltam a cada série fotográfica, como citações permitem- -me definir a minha linha temporal, o meu percurso.
Por outro lado, a insegurança recorrente do processo criativo, que passado algum tempo se transfigura em certeza de que é aquele o objecto que procurava, que pre- cisava, define a persistência deste percurso. A persistência implícita em cada nova peça que desejo que seja vista, contemplada, sobre a qual desejo que seja possível pensar. E de novo a insegurança de não saber se é claro, não saber se para os outros também vai fazer sentido.
No filme Heart of a dog de Laurie Anderson há um momento em que a artista nor- te-americana fala de um tema sobre o qual me lembro de pensar muitas vezes. Tão particular. Tão extraordinário e tão reconfortante que ela tenha feito disto um tema. Quer dizer que também para ela faz sentido pensar sobre isto. Aquelas luzinhas dentro dos olhos.
“What is the name of those things you see, when you close your eyes? I think it’s phosphenes. The reddish patterns. The little stripes and dots and the blurry little lines you see floating around when you close your eyes. And no-one really knows what they are or what they’re for. Sometimes they seem to be brought on by sound or random electrical or magnetic firing. Sometimes phosphenes are called prisoner’s cinema. Some kind of eternal plotless avant-garde animated movie. Or maybe they’re just screensavers, holding patterns that just seat there so your brain won’t fall asleep.” 14
14 Heart of a dog, 2015. (Tradução da autora: “Qual é o nome daquelas coisas que vemos quando fechamos os olhos? Acho que são fosfenos. Os padrões avermelhados. Aquelas pequenas listras e pontos e aquelas pequenas linhas turvas que vemos a flutuar quando fechamos os olhos. E ninguém sabe realmente o que são ou para que servem. Às vezes, parecem ser despoletadas pelo som ou por disparos elétricos ou magnéticos aleatórios. Às vezes, os fosfenos são chamados cinema do prisioneiro. Um eterno filme de animação avant-garde sem enredo. Ou talvez sejam apenas protectores de ecrã, mantendo padrões que ficam ali para que nosso cérebro não adormeça.”)
Em Solar breath, (Northern Caryatids)15 de Michael Snow, uma cortina a bater numa janela, como uma respiração, faz do movimento da luz, do ar e do som o assunto, recorrente no trabalho deste artista. Um registo de um objecto vulgar, que quando observado a determinada hora do dia, em determinada época do ano se torna extraordinário, revelando e velando ao longo de um compasso mais ou menos regular uma paisagem também ela recorrente no seu trabalho – as montanhas do Quebec.
Fig. 4 Michael Snow, Solar Breath
Ao citar estes autores, referências para mim, para o meu trabalho, cito relações entre trabalhos, entre temas, sinapses, linhas de possibilidades infinitas entre coisas da vida que interferem, que se intrometem nos meus pensamentos ou pensamentos da vida que interferem e se intrometem na minha fotografia e agora na minha escrita deste ensaio. Coisas do dia-a-dia que nos deixam a divagar, a deambular entre elas até conseguirmos chegar outra vez ao ponto onde tínhamos ficado – simplicidades, inconsistências, deslumbres, o ar.
Duplicação | ampliação
A Montanha surge no vale como uma duplicação da forma maior que a enquadra, como se, essa outra, fosse a sua ampliação. Essa outra que eu já conhecia há muito, por isso tornava-se agora invisível ao meu olhar. Aquele pequeno monte parecia-me muito mais intrigante, como se não estivesse ali anteriormente.
15 2002, vídeo a cores, 62›
Lembro-me de há uns anos me terem explicado que o monte, situado num dos maiores parques de Berlin16, onde estava a fazer um piquenique com amigos, tinha sido construído no pós-guerra com os destroços da cidade, cobertos de terra e vegetação. Não uma formação geológica criada num tempo que nos é abstracto – há milhões de anos – mas um monte com cerca de 80 anos, uma idade tão concreta como a possível de um ser humano.
Este monte parecia-me ter sido assim construído, de um momento para o outro, talvez nos últimos meses, talvez nos últimos anos. Como é que poderia não ter reparado nele antes? Claramente não tinha olhado bem antes, porque já lá estava.
Uma outra estranheza em relação a este relevo é a sua forma mutante. Não no sentido de a proximidade o tornar aparentemente maior, o que seria expectável e até evidente, mas sim como se a aproximação e uma diferente abordagem criassem uma ilusão óptica, moldando a sua forma para o tornar visivelmente mais fácil de subir. Ou seja, visto ao longe, de um lado tem uma forma piramidal; visto ao perto, de outro lado, é completamente redondo.
A forma piramidal que facilmente relaciono com a Montagne Sainte-Victoire de Cézanne, que repetidamente pinta em busca da sua melhor representação; mas também com a Majestic Mountain da Paramount Pictures, imagem recorrente do início de tantos filmes vistos e usada por Tacita Dean em Film17 remetendo aí para a forma dos sais de prata que constituem a matéria sensível da película. Relaciono também com Negativland18 e Diamond Sea19 de Paulo Brighenti, dois desenhos a carvão, que me situam no essencial da forma, do relevo, da observação, como se a folha de um caderno de campo se ampliasse à dimensão de uma parede invertida, enfatizando o lado mais simbólico e metafórico da representação, que é essencial para a minha peça. Em ambas as referências, a escala das peças permite-nos estar perante o objecto ampliado sobre uma superfície em que a imagem se inscreve inteira, numa dimensão incomum para um desenho ou uma película, mas ainda assim bem menor que o seu referente.
16 Teufelsberg em Grunewald.
17 Exposição na Turbine Hall da Tate Modern, em 2011.
18 Obra de 2010, 10x17 m. Carvão sobre a parede, exibida na galeria Baginsky, em Lisboa.
19 Obra de 2009, 10x17 m. Carvão sobre a parede, exibida no Drawing Spaces, Fábrica Braço de Prata, em Lisboa.
Fig. 5 Paulo Brighenti, Negativland Fig. 6 Paulo Brighenti, Diamond Sea
Fig. 7 fragmento de película de 35mm. Figs. 8 e 9 Tacita Dean, Film
Mas a forma triangular, à medida que nos aproximamos, altera-se para redonda, como se a víssemos agora através de um qualquer dispositivo que cria uma distor- ção. E as associações de imagens, as referências, mudam. De montanha-forma- -essência passamos a uma montanha-imagem-diluição que torna acessível o relevo à minha frente, desmistificando-o, concretizando-o na sua realidade. Existe uma certa desilusão neste momento. Mas o objectivo de subir ao cume recentra-me e continuo.
Mais tarde iria perceber que a ilusão se duplicaria num outro monte, que surgiu na paisagem, ao lado deste, como este, sem que o tenha visto antes.
Espaço | paisagem | lugar | percurso
A experiência de ver inicialmente um objecto à distância e depois o ver numa sucessão de diferentes enquadramentos de aproximação e de relação directa dá-nos diferentes leituras de um espaço, transforma-o em lugar, dentro de uma paisagem.
No espaço, delimitado pela linha do horizonte, começamos a reconhecer elementos, marcas, a conseguir perceber distâncias, alturas, cores, formas e o nosso olhar já não vagueia até ao fundo do plano, antes retém-se em tudo isso, porque aquela paisagem contém em si lugares que já nomeamos.
O lugar da Montanha manteve-se indefinido, enquanto não fui lá. Sabia onde era, mas não sabia como ir até lá. E só numa segunda viagem consegui mesmo estar lá. Na primeira tentativa aparecia e desaparecia ao longo da estrada.
“Place can be difficult to locate. One might think that one can spot it somewhere, some way off in the distance, perhaps, and yet as one approaches it seems to disappear, only to reconfigure at some farther point, or back from whence you came.” 20
Da segunda vez, talvez porque fui por onde sempre achei que era o caminho, porque fui sozinha com a intenção de fazer esta peça, mais concentrada, mais tranquila, mais cedo, talvez por tudo isso tenha sido fácil chegar ao lugar de onde fazia sentido partir, começar a caminhar.
“Place is an aggregate, the coming of many disparate elements” 21
A paisagem ao longo do percurso ia mudando de forma muito inesperada. A cor da
A paisagem ao longo do percurso ia mudando de forma muito inesperada. A cor da
terra, a vegetação, a ondulação do terreno, as marcas de diferentes usos da terra e,
20 Dean e Millar (2005) p. 11. (Tradução da autora: “O lugar pode ser difícil de localizar. Pode-se pensar que se pode localizá-lo algures, talvez de alguma forma à distância, no entanto, à medida que nos aproximamos, parece desaparecer, apenas para se reconfigurar em algum ponto mais distante, ou de volta de onde viemos.”)
21 Dean e Millar (2005) p. 15. (Tradução da autora: “O lugar é um agregado, a reunião de muitos elementos díspares”)
à medida que ia subindo e depois descendo, a mudança de perspectiva sobre a paisagem dava-me a ver sempre coisas diferentes, que me permitiam conhecer melhor, interpretar melhor.
“A landscape, then, is the land transformed, whether through the physical act of inhabitation or enclosure, clearance or cultivation, or the rather more conceptual transfiguration of human perception, regardless of whether this then becomes the basis for a map, a painting or a written account.
Like the landscapes themselves, our understanding of landscape has changed over time, and this is true also of place.” 22
Ao longo deste Percurso vou pensando a paisagem conceptualmente abrangente, tornada objecto na pintura e na fotografia, desde os autores naturalistas até à prática artística contemporânea. Há momentos que me aproximam mais de uma abordagem cenográfica, mais contemplativa da paisagem e outros em que a paisagem, enquanto objecto de intervenção, emerge como referência.
Volto, uma vez mais, a Cézanne, como ele próprio voltava ao seu tema recorrente: o Mont Sainte-Victoire ou a Montagne Sainte-Victoire. A designação volta a não ser clara. O objecto é o mesmo, mas passa de monte a montanha. Será que é apenas uma falta de coerência? Será que também para Cézanne havia uma intenção de distinguir a representação que nos quadros a óleo é um monte e na aguarela é uma montanha?
“Cézanne pintava a paisagem. (...) A paisagem surgia como um brilho ofuscante porque Cézanne circunscrevera com lentidão cada objecto, aferia por assim dizer cada tonalidade; dia após dia.”23
“A paisagem reflete-se, humaniza-se, pensa em mim. Eu objectivo-a, projecto-a, fixo-a na minha tela”24
22 Dean e Millar (2005) p. 13. (Tradução da autora: “Uma paisagem, é então, a terra transformada, seja pelo acto físico de habitação ou cercamento, desmatamento ou cultivo, ou pela transfiguração mais conceptual da percepção humana, independentemente de isso se tornar a base para um mapa, uma pintura ou um registo escrito.
Como as próprias paisagens, o nosso entendimento de paisagem tem mudado ao longo do tempo, e isso também é válido para o lugar.”)
23 Faure e Gasquet (2012) p. 62
24 Faure e Gasquet (2012) p. 68
(...)
“Ainda há pouco eu lhe dizia que o cérebro livre do artista deve ser como uma placa sensível, nada mais do que um aparelho registador do momento em que ele executa. Mas banhos sábios levaram essa placa sensível ao ponto de receptividade onde ela pode impregnar-se com a imagem conscienciosa das coisas. Um longo trabalho, a meditação, o estudo, sofrimentos e alegrias, a vida preparam-na. Uma meditação constante sobre os processos dos mestres. E depois o meio onde é habitual movermo-nos... este sol, veja lá bem... O acaso dos raios, o seu andamento, a infiltração, a encarnação do sol através do mundo (...) A delicadeza da nossa atmosfera tem a ver com a delicadeza do nosso espírito. Estão uma na outra. A cor é o lugar onde o nosso cérebro e o universo se encontram. (...) Olhe para esta Sainte-Victoire.”25
Fig. 10 Paul Cézanne, Mont Sainte-Victoire
De Cézanne salto para o Atlas de Gerhard Richter, onde a acumulação de anos e anos de imagens recolhidas, desde meados de 1960, coleccionadas e catalogadas por categorias – entre elas Landschaften (Paisagens) ou Gebirge (Montanhas) – se re-organizam em inúmeras folhas criando, em cada uma e entre todas, relações imensas como uma espécie de planisfério de temas e momentos da nossa história colectiva e da sua vida.
25 Faure e Gasquet (2012) p. 68
Fig. 11 Gerhard Richter, Gebirge
Fig. 12 Gerhard Richter, Landschaften Fig. 13 Gerhard Richter, Landschaften
Fig. 12 Gerhard Richter, Landschaften Fig. 13 Gerhard Richter, Landschaften
Este lado serial, entre diferença e repetição, de observação e de experimentação a partir de um lugar, levam-me a convocar o trabalho de Douglas Huebler em que localização, duração ou a combinação de ambos estes parâmetros nos dão o enquadramento para a leitura de cada imagem, que em algumas séries regista lugares. Não que o lugar em si seja o assunto para o autor, mas sim, porque definindo um sistema de registo, ele implica o lugar como um qualquer lugar do mundo susceptível de ser registado.
Figs. 14 e 15 Douglas Huebler, Duration Piece #11 Fig. 16 Douglas Huebler, Location Piece #5
Cada conjunto de imagens é acompanhado por um texto dactilografado que revela o sistema utilizado na sua captação, que pode ser, por exemplo, definindo o tempo regular em que decorre a captação de cada imagem – a cada 10 segundos, a cada hora – ou definindo a distância, o intervalo espacial entre a captação de cada imagem – a cada 5 passos, a cada 5 milhas. Esta cadência temporal ou espacial sobrepõe-se ao que é fotografado, esvaziando a imagem de uma leitura baseada numa qualquer noção de lugar, muito embora ele exista ao ser referenciado em mapas ou pelo nome.
“The photographs were not really meant to be good photographs of an interesting place. They just happened to be where the place was that I’d already located on a map before I went in the first place. (...) So what it finally comes back to is
the idea of these locations, the idea of the system, and that demands language. 26
(...)
I set up a system, and the system can catch a part of what is happening – what’s going on in the world – an appearance in the world, and suspend that appearance itself at any given instant from being important, you know, being what the work is about. The work is about the system. The system is not proof of anything either, except that you can set up almost any series, you see, and reach into anything that’s going on.” 27
Interessa-me aqui esta espécie de legitimação de um qualquer lugar como matéria, retirando a necessidade de encontrar uma razão específica para a fotografia de um lugar, pelas suas características morfológicas ou visuais e remetendo para cada autor a razão da existência de cada obra.
Se antes explicitei as características e a minha relação com a Montanha, é neste enquadramento que vejo a necessidade do seu registo e da sua existência enquanto peça. Poderia ser um qualquer outro relevo na paisagem, que por ser um relevo, me suscitasse interesse e me indiciasse um princípio para este percurso.
Este registo segmentado e metódico remete para uma inevitável citação da Land art. Detenho-me em Hamish Fulton, o artista caminhante, que recorre também à fotografia e ao texto para produzir os registos que nos permitem relacionarmo- -nos espacialmente e temporalmente com a acção que constitui cada obra. Mas, em contraponto com Huebler, Fulton convoca o lugar-paisagem para as suas imagens, a descrição, o ambiente desse lugar, quer naquilo que tem de visível, quer no registo escrito do que pertence a outros domínios sensíveis – sons, temperatura – o território onde sucedem actos performativos pré-definidos, mas onde não se deixam marcas nem vestígios. Como se nada ali acontecesse e só pelo registo
26 Alberro e Norvell (2001) p. 146. (tradução da autora: “As fotografias não pretendiam ser boas fotografias de um lugar interessante. Simplesmente estavam onde estava o lugar que eu já havia localizado no mapa antes de ir para lá. (...) Então, onde finalmente chegamos é à ideia dessas localizações, à ideia de um sistema, e isso exige linguagem.
(...)
Concebi um sistema, e esse sistema pode captar uma parte do que está a acontecer – do que se passa no mundo – um aparecimento no mundo, e suspender a qualquer momento a importância desse mesmo aparecimento, sabe, sendo que a obra é sobre isso. A obra é sobre o sistema. O sistema também não é prova de nada, excepto de que podemos configurar praticamente qualquer série, percebe, e alcançar seja o que for que esteja a acontecer.”)
27 Alberro e Norvell (2001) p. 139
fotográfico e escrito se dê corpo e existência a uma peça que perdura para além daquele tempo em que decorre um percurso.
“If I do not walk, I cannot make a work of art” (...)
“My art is about specific places and particular events that are not present in the gallery. The given information is minimal. My hope is that the viewer will create a feeling, an impression in his or her own mind based on whatever my art can provide. The artwork also operates a bit like a noticeboard, as it were, gazing back out at the world.”28
Fig. 17 Hamish Fulton, Arkle Sutherland “A THREE DAY WALK COAST TO COAST ACROSS THE NORTH OF SCOTLAND SUMMER 1976”29
Para além da referência visual, relaciono o meu Percurso com Fulton pelo acto de caminhar na montanha ou em paisagens naturais, que faz parte da minha vida desde a infância. No entanto, só muito recentemente estes lugares se tornaram objecto do
28 Tate Britain (2002) p.108. (Tradução da autora: “Se não caminhar não consigo fazer uma obra de arte” (...)
“A minha arte é sobre lugares específicos e eventos particulares que não estão presentes numa galeria. A informação fornecida é mínima. A minha esperança é que o/a espectador/a crie um sentimento, uma impressão na sua mente, com base no que a minha arte lhe pode proporcionar. A obra de arte funciona também um pouco como um quadro de avisos, por assim dizer, olhando de volta para o mundo.”)
29 Tradução da autora: “Caminhada de 3 dias, de encosta a encosta, através do norte da Escócia Verão 1976”
meu trabalho - em Long Piece (2013), De volta (2014), Montanha (2016) e Ando a pensar nisto (2019). E só muito mais recentemente ainda as expedições a espaços naturais com o fim específico de fotografar se tornaram parte deste Percurso.30
E ainda nas montanhas como imagem, convoco a paisagem do Quebec de Michael Snow: uma paisagem, a partir do cume de uma montanha, em movimento constante e aleatório que deriva do acoplar da câmera a um dispositivo concebido e construído especificamente para a criação de La Région Centrale. Perdemos aqui as referências espaciais e emergimos numa vertigem inquietante, mas simultaneamente contemplativa, enleante, tendo por base um som que se relaciona com as ondas sonoras e impulsos que originaram os movimentos desta câmera.
Fig. 18 Michael Snow, La région centrale
Num outro registo, mais recente, em Video Fields, de 2015, Michael Snow usa o ar, o vento, a paisagem como superfície de relevo, para criar um cenário de “deslocações perceptivas entre o «natural» e o «artificial», entre o analógico e o eletrónico que
30 Em referência ao Grupo do Risco, a associação de que faço parte desde 2020 com outros artistas – desenhadores, fotógrafos e videastas – que “tem como objectivo promover a consciência colectiva dos valores ambientais, através da prática artística. É constituído por professores universitários e profissionais de diversos domínios das artes e das ciências e a sua actividade sustenta-se no conjunto dos registos individuais em desenho e fotografia, desenvolvidos pelo grupo em espaços relevantes do património natural e histórico de Portugal continental e ilhas, e de outros países de influência lusófona.” Pedro Salgado in Exposição Grupo do Risco | desenho em cadernos e fotografia | expedições a espaços naturais 2007-2019, p.13
nos submerge pela energia visual de seis projeções de imagens de vento ondulando paisagens intensamente verdes embora o som que ouvimos seja, na verdade, criado com um sintetizador.”31
Fig. 19 Michael Snow Video Fields
Com este campo em fundo e a memória muito nítida da sensação de estar dentro da sala onde entrei nesta obra, termino este percurso de referências, desde o simbolismo de Daumal ao conceptualismo de Fulton; pelas abordagens das paisagens, das montanhas, desde Cézanne a Michael Snow; pelos espaços que informam transversalmente o meu trabalho.
Observação | registo | representação
A minha observação é definitivamente uma observação pré-definida pelo meu percurso, filtrada, por um lado, pelas referências artísticas, por outro, pelas referências antropológicas que me acompanham e enquadram o que olho.
Não olho para a paisagem, não olho o mundo de uma forma simples ou alienada e cada vez mais a observação é, para mim, um processo lento, demorado, integrando diferentes camadas de leituras possíveis, diferentes relações.
31 Martins (2018)
Na observação da paisagem, do lugar, como observadora-participante32 da superfície impressa com as marcas do Antropoceno33, encontro as imagens que registam o papel e o impacto do ser humano no planeta, dos ecossistemas num limite de adaptação. E essa dimensão implicada é uma leitura que expresso na escolha dos lugares que torno objecto do meu percurso.
Da antropologia importo também uma incessante curiosidade por lugares desconhecidos, como princípio, e o trabalho de campo como metodologia para o meu trabalho artístico.
Ver ao longe não me é suficiente, preciso de estar nos lugares, percorrê-los, experienciá-los para depois os dar a ver, num acto de partilha, que pressupõe que o que vejo só se completa com o que vemos em comum e o que retemos particularmente, como indivíduos.
Esta é a minha visão da Montanha: um registo em que uso a fotografia como meio para esse dar a ver, mas que tem subjacente um caderno de campo e uma estrutura conceptual que, apesar de poder não ser visível nas imagens, as fundamenta.
Este Percurso, num paralelismo entre o que andei e o que é o meu trajecto artístico, permite trazer para a Montanha o que está na base da sua criação, dando-a a ver integralmente, com todas as camadas geológicas e metafóricas que a constituem.
Montanha tem subjacente uma relação topofílica, um fascínio por um lugar que existe na representação que decido da paisagem, das ligações, das analogias que estabeleço, daquilo que me aproxima de um lugar de memórias, de um percurso que as revisita para as dar a ver a outros, um registo que remete para a forma diarística e que funciona com um mapeamento da paisagem avistada e do território percorrido.
“Mas, à medida que reflectíamos e recolhíamos informações sobre a natureza das montanhas, que teríamos pela frente, tornava-se cada vez mais evidente que a nossa expedição seria longa, muito longa; ela duraria sem dúvida anos.”34
32 Conceito metodológico da antropologia criado por Bronislaw Malinowski (1884 - 1942), antropólogo da corrente funcionalista.
33 Definição de uma nova época geológica, a partir do conceito do biólogo norte-americano Eugene F. Stoermer, criado em 1980, e divulgado pelo cientista atmosférico holandês Paul Crutzen no início dos anos 2000 que integra dimensões como a capacidade biológica do planeta, dos ecossistemas, de produzir o que o ser humano usa e absorver os resíduos gerados num contexto de desenvolvimento socio-económico, cultural, tecnológico e genético; a pegada ecológica; a redução da biodiversidade e o aumento da tecnodiversidade.
34 Daumal (1992) p. 88